sábado, 31 de julho de 2010

FRAGILIDADES


“Nossas certezas se dispersam. Nosso próprio ego, invisível e inatingível, é provavelmente uma utopia, é um lugar sem lugar onde ventos opostos sopram inutilmente numa bruma que não se dissipa, à medida que passam os dias. Não podemos alcançá-lo. Também não podemos prever e preveni-lo. Ele é “ondulante e diverso”. Somos capazes de tudo. Nós mesmos nos surpreendemos a toda hora, para o melhor e sobretudo para o pior. Dizemos, nos escutamos freqüentemente dizer: “Nunca esperaria isso de mim”. E é verdade. Estamos expostos, dia após dia, ao inacreditável.
Resta-nos somente nossa fragilidade, único elemento durável, indiscutível, inseparável desse amálgama que nós somos.
Gostaríamos de fazê-la calar, fazê-la fugir. Tudo nos remete a ela, só a ela.”
                                                                               ...............
“Por causa disso, provavelmente, mas sem denegrir sistematicamente o que somos (segundo quais critérios e aos olhos de quem seria correto nos denegrir?), no final das contas vale mais a pena escolher a fragilidade e nos apoiar nela. Mesmo que a escolha seja arbitrária, ela é mais fecunda, mais esclarecedora do que as razões que teríamos para nos estimar. E ela, ao menos, não nos trairá.
Outra vantagem, quanto mais não seja: nós a partilhamos com os animais, mortais e ameaçados como nós, e também com os vegetais, que sequer têm o recurso de fugir diante do perigo, e que, imobilizados em algum lugar, devem fazer chegar a eles por mil estratagemas todo o necessário.
Se persistirmos na admiração e no elogio de nós mesmos, não somente iremos de decepção em decepção como não observaremos, não experimentaremos nada de verdadeiro. Continuaremos a confiar em nós e a confundir nosso umbigo com um quadrante solar. Encontraremos uma desculpa para todos os nossos gestos, mesmos os mais “desumanos”, e conservaremos intacto o veneno que se chama esperança, noção vazia, vaga e abstrata, sentimento que serve para qualquer coisa, do qual devemos obrigatoriamente nos livrar.
Viver na esperança não é viver. É na verdade esquecer a vida. Somente o alarme, a angústia e por vezes até o desespero podem nos empurrar para a frente, nos ajudar a agir. Encontrarmos neste caso uma das belas lições do implacável Bhagavad-Gita: “Livre-se da esperança. E veja as coisas como elas são.”
Você é isto, você não é outra coisa.”

                Partes retiradas do livro FRAGILIDADE (Jean-Claude Carrière) Entre pg. 84 e 114.

 

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O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.
Fernando Pessoa

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