sábado, 2 de outubro de 2010

Capital inicial

Outra história com um outro rosto.
Um outro beijo com o mesmo gosto.
Era cedo e não podia dar certo.
Lá vem um outro dia frio e incompleto.
Agora veja o meu estado,
Olhando o futuro e prevendo o passado
Como alguém que não sabe o que quer.
Mentindo para todos enquanto puder.

Gritar...Se foi um erro, eu quero errar sempre assim...
Gritar... Se teve começo que tenha fim...

O tempo virou e me deu as costas
Outra pergunta com a mesma resposta
Os dias são sempre iguais.
O mesmo filme em todos os canais.
Quero voar mas tenho medo de altura.
O céu azul me dá tontura.
Eu caio mais não chego ao chão.
Estou certo mais perdi a razão.

Gritar...Se foi um erro ... eu quero errar sempre assim...

Vivendo e aprendendo a perder...
Vivendo e aprendendo a esquecer...

Capital inicial....

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Confissão



De um e outro lado do que sou, 
da luz e da obscuridade, 
do ouro e do pó, 
ouço pedirem-me que escolha; 
e deixe para trás a inquietação, 
a dor, 
um peso de não sei que ansiedade. 

Mas levo comigo tudo 
o que recuso. Sinto 
colar-se-me às costas 
um resto de noite; 
e não sei voltar-me 
para a frente, onde 
amanhece. 

Nuno Júdice

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Gritar

Aqui a acção simplifica-se 
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira 
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes 
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos 
Ponho-me a gritar 
Todos falavam demasiado baixo falavam e 
                                                             [escreviam 
Demasiado baixo 

Fiz retroceder os limites do grito 

A acção simplifica-se 

Porque eu arrebato à morte essa visão da vida 
Que lhe destinava um lugar perante mim 

Com um grito 

Tantas coisas desapareceram 
Que nunca mais voltará a desaparecer 
Nada do que merece viver 

Estou perfeitamente seguro agora que o Verão 
Canta debaixo das portas frias 
Sob armaduras opostas 
Ardem no meu coração as estações 
As estações dos homens os seus astros 
Trémulos de tão semelhantes serem 

E o meu grito nu sobe um degrau 
Da escadaria imensa da alegria 

E esse fogo nu que me pesa 
Torna a minha força suave e dura 

Eis aqui a amadurecer um fruto 
Ardendo de frio orvalhado de suor 
Eis aqui o lugar generoso 
Onde só dormem os que sonham 
O tempo está bom gritemos com mais força 
Para que os sonhadores durmam melhor 
Envoltos em palavras 
Que põem o bom tempo nos meus olhos 

Estou seguro de que a todo o momento 
Filha e avó dos meus amores 
Da minha esperança 
A felicidade jorra do meu grito 

Para a mais alta busca 
Um grito de que o meu seja o eco. 

Paul Eluard

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Fui sabendo de mim

Fui sabendo de mim 
por aquilo que perdia 

pedaços que saíram de mim 
com o mistério de serem poucos 
e valerem só quando os perdia 

fui ficando 
por umbrais 
aquém do passo 
que nunca ousei 

eu vi 
a árvore morta 
e soube que mentia 

Mia Couto

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sorriso Audível das folhas

Sorriso audível das folhas 
Não és mais que a brisa ali 
Se eu te olho e tu me olhas, 
Quem primeiro é que sorri? 
O primeiro a sorrir ri. 

Ri e olha de repente 
Para fins de não olhar 
Para onde nas folhas sente 
O som do vento a passar 
Tudo é vento e disfarçar. 

Mas o olhar, de estar olhando 
Onde não olha, voltou 
E estamos os dois falando 
O que se não conversou 
Isto acaba ou começou? 


Fernando Pessoa

domingo, 26 de setembro de 2010

A Beleza



De um sonho escultural tenho a beleza rara,
E o meu seio, — jardim onde cultivo a dor,
Faz despertar no Poeta um vivo e intenso amor,
Com a eterna mudez do marmor' de Carrara

Sou esfinge sutil no Azul a dominar,
Da brancura do cisne e com a neve fria;
Detesto o movimento, e estremeço a harmonia;
Nunca soube o que é rir, nem sei o que é chorar.

O Poeta, se me vê nas atitudes fátuas
Que pareço copiar das mais nobres estátuas,
Consome noite e dia em estudos ingentes..

Tenho, pra fascinar o meu dócil amante,
Espelhos de cristal, que tornaram deslumbrante
A própria imperfeição: — os meus olhos ardentes!

Charles Baudelaire




Hino à Alegria

Adicionar legenda

Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta, 
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar, 
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta, 
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar. 

Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos, 
Quase meiga, apesar do seu riso constante, 
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos, 
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante... 

Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra; 
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador; 
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra, 
Sem que dele irradie um facho criador. 

Quando menos se espera, irrompe de improviso; 
Mas foge-nos também com uma presteza igual; 
E dela apenas fica um pálido sorriso 
Traduzindo o desdém duma ilusão banal. 

Onda mansa que só à superfície corre, 
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda! 
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre, 
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda! 

No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada, 
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa, 
Como chuva a cair numa planta abrasada, 
A fornalha em que a Dor se transmuta em Beleza! 

Pensar, é certo, eleva o espírito mais alto; 
Sofrer torna melhor o coração; depura 
Como um crisol: a chispa irrompe do basalto, 
Sai o oiro em fusão da escória mais impura. 

A Alegria é falaz; só quem sofre não erra, 
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que O louve; 
A Alma, na oração, desprende-se da terra; 
Jamais o homem é vão diante de Deus que o ouve! 

E contudo, — ilusão!—basta que ela sorria, 
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar, 
Vamos logo em tropel, no capricho do dia, 
Como ébrios, evoé! atrás dela a cantar! 

Mas se ela, de repente, ao nosso olhar se furta, 
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso; 
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta, 
Que mal chega a doirar as cortinas do berço. 

Às vezes, essa luz, de tão frágil encanto, 
Vem ainda banhar certas horas da Vida, 
Como um íris de paz numa névoa de pranto, 
Crepitação, fulgor duma estrela perdida. 

Então, no resplendor dessa aurora bendita, 
Toma corpo a ilusão, e sem ânsias, sem penas, 
O espírito remoça, o coração palpita 
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas! 

Mas efémera ou vã, a Alegria... que importa? 
Deusa ingénua ou bacante, o seu riso clemente, 
Quando, mesmo de longe, ecoa à nossa porta, 
Deixa em louco alvoroço o coração da gente! 

Momentânea ou falaz, é sempre um dom divino, 
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer... 
Pudesse eu celebrar teu louvor no meu Hino! 
Momentâneo, falaz encanto de viver! 

O teu sorriso enxuga o pranto que choramos, 
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes! 
Nesta sentimental língua que nós falamos, 
Só a Dor e a Paixão têm acordes sublimes! 

António Feijó